A globalização é um fato. Não é totalmente boa, nem completamente má. Precisa ser estudada porque está levando a humanidade a uma nova forma de organização. Nesse processo de mudança de paradigma, o grande desafio é encontrar caminhos para o estabelecimento do modelo de uma sociedade global, que preserve os direitos e garantias individuais — mantendo o indivíduo como unidade fundamental — e, conseqüentemente, respeite a pluralidade e a diversidade.
É assim que o advogado Eduardo Felipe Pérez Matias interpreta o processo de transformação em curso no mundo. Ele dedicou-se a pesquisar e estudar o fenômeno da globalização durante cinco anos, ao longo dos quais fez mestrado na Universidade de Paris II-Pantheón-Assas e doutorado na Universidade de São Paulo, com direito a temporada de estudo na Universidade Columbia, em Nova York, como visitante. O estudo, aliado à experiência como advogado especializado em Direito Internacional, resultou no livro A Humanidade e suas Fronteiras – Do Estado Soberano à Sociedade Global, lançado pela Editora Paz e Terra. Na obra, o autor procura enunciar e analisar as características da globalização e seus efeitos sobre a soberania dos Estados contemporâneos, examinando a nova realidade em seus múltiplos aspectos. “Hoje temos uma nova configuração institucional. Essa evolução pode levar a uma sociedade global, que não é só mais de Estados, mas que compartilha valores: uma comunidade global, que chamo de humanidade sem fronteiras. É uma hipótese, muito longínqua, que poderá derivar do aprofundamento desses valores comuns à humanidade”, afirma Matias, acrescentando que “a institucionalização que existe dessa sociedade global precisa ser aperfeiçoada”.
A grande preocupação do advogado em relação ao fenômeno da globalização é que o interesse da maioria seja desrespeitado.“As grandes corporações transitam de uma forma muito mais ágil, solta e livre do que no modelo tradicional que temos. Não se pode fingir que isso não existe. A responsabilidade das pessoas que pensam o Direito é exatamente evitar que esses arranjos desrespeitem as funções básicas do Estado. Essa é a nossa função, e um desafio como advogados nesse mundo globalizado, para que a globalização não viole os direitos das pessoas”, revela.
TD — Como avaliar o livre e incontrolável fluxo de capitais pelo mundo ?
Matias — É a globalização financeira, que também deriva da revolução tecnológica. Ter um mercado interligado, como existe hoje, ter a possibilidade de transportar quantidades enormes de dinheiro em frações de segundo de um lado para o outro do mundo só é possível graças à revolução tecnológica. Isso torna muito mais difícil o controle da economia pelo Estado.TD — E facilita o crime organizado.Matias — Esse é um problema. Hoje, existem crimes que são muito difíceis de controlar, porque podem acontecer na internet. Um exemplo: no Brasil são proibidos os jogos de azar, mas isso não impede que uma pessoa entre num cassino virtual e jogue. O poder estatal que deveria ser efetivo, torna-se menos efetivo por conta da existência do cyberespaço. Tem-se também a questão tributária. A internet permite que um serviço seja contratado em outro país. Como é que esses serviços vão ser tributados? Esse problema não é nacional, é transnacional, que só pode ser resolvido por meio de cooperação. Não há outro jeito.
TD — Mas há conflitos de interesses entre ricos e pobres na globalização?
Matias — Existem dois problemas básicos. A partir do momento em que os Estados têm uma necessidade muito grande de atrair riqueza, a partir do momento em que os Estados sofrem essa pressão — dos mercados financeiros internacionais, dos operadores financeiros locais, das empresas transnacionais que estão instaladas em seu território, das empresas que poderiam estar instaladas nele, mas ameaçam não vir ou ameaçam ir embora — começam a limitar as políticas e a globalização começa a ser usada em favor de uma distribuição de poder às vezes em benefício de interesses privados. Na hora em que há organizações internacionais que têm sistema de voto desequilibrado, como é o caso do FMI, o que pode acontecer é que os interesses de determinados Estados mais poderosos se sobreponham aos interesses dos mais fracos, ou até do interesse coletivo. O Estado é uma instituição que foi idealizada para evitar esse tipo de distorção e quando há instituições democráticas funcionando adequadamente, procura-se evitar que interesses privados se sobreponham aos públicos, que os interesses de determinados grupos se sobreponham aos demais. Na globalização esse risco está presente.
TD — E como fica a soberania dos Estados?Matias — A soberania tem duas acepções tradicionais. Na primeira, a soberania se confunde com o poder do Estado, é substantivo, é o poder estatal; na segunda, se confunde com a qualidade específica desse poder do Estado, considerado supremo e independente, portanto, é adjetivo. Esse poder do Estado só faz sentido se for efetivo. A efetividade do poder estatal é necessária para o reconhecimento do Estado. Quando se diz que o Estado é supremo e independente, significa dizer que é autônomo, que tem liberdade para agir. As pessoas tendem a parar na análise da soberania dizendo que o Estado é quem decide se quer ou não abrir mão de alguns dos seus poderes. Logo, ele seria independente e poderia desistir de participar das organizações internacionais, poderia expulsar as empresas transnacionais de seu território, etc. Hoje, isso não ocorre, porque o Estado depende de arranjos institucionais globais tanto para poder se inserir no mercado global, quanto para atrair riqueza para o seu território. O custo de oportunidade de dizer não a tudo isso é muito grande.
TD — Atrair riqueza significa o quê?Matias — Significa ter capital, ter empresas operando no território, gerando emprego e beneficiando as populações que vivem no país. Hoje, isso é uma necessidade do Estado.
TD — Mas as empresas não estão preocupadas em melhorar a vida dessas populações. Elas atuam em todo o mundo para aumentar seus lucros, ou não?
Matias — O que acaba acontecendo é que a soberania de fato é afetada. O Estado perde o poder estatal, a efetividade, a autonomia. O Estado tem uma limitação das opções políticas como, por exemplo, a política econômica. O Estado sofre a pressão tanto do mercado financeiro internacional quanto das empresas transnacionais e de algumas organizações internacionais, como o FMI. A autonomia do Estado é cerceada.
TD — Como explicar a situação da Argentina, que optou por fazer o que considerou ser melhor para ela e não o que o FMI, o mercado financeiro internacional e as empresas transnacionais queriam, e conseguiu taxas de crescimento expressivas?
Matias — Às vezes, o Estado pode optar. Mas não sempre. O poder soberano, concentrado e autônomo, é cada dia menos autônomo. Mas há exceções. A Argentina causou estranheza, mas é exceção. Um exemplo mais completo e histórico é o da crise asiática de 1997. Aqueles países, na ocasião, não tinham condições de dizer ‘não’ porque tinham uma forte crise de liquidez. Tiveram de atender às famosas condicionalidades do FMI. As organizações internacionais também limitam o poder do Estado. Mas aí existe um fenômeno que é mais importante do que esse, que tem a ver também com soberania, que é a questão de algumas organizações internacionais terem hoje alguns órgãos com características supranacionais. Um exemplo paradigmático é a União Européia, que tem um tribunal cujas decisões são automaticamente implementadas pelos Estados-membros. Eles submetem-se a um órgão exterior, cuja vontade independe da deles. Não dá para dizer que o Estado segue sendo supremo em seu território, porque a população está submetida a um órgão que está acima dele. A soberania como supremacia é afetada.
TD — Um desses órgãos é a OMC (Organização Mundial do Comércio).
Matias — É o grande exemplo. Hoje, os Estados têm de submeter-se às decisões do órgão de solução de disputas da OMC. E essas decisões são tomadas por um órgão que é quase jurisdicional e têm de ser acatadas pelos Estados. E têm sido. Quando um país desrespeita uma decisão paga um preço muito alto por isso.
TD — Por exemplo?
Matias — Os Estados Unidos foram condenados pela OMC a alterar um mecanismo que tinham de incentivo às exportações e a pagar US$ 4 bilhões em medidas compensatórias à União Européia.
TD — E pagaram?
Matias — Ainda é um caso em discussão. Mas, em outros casos, os Estados Unidos tiveram de voltar atrás. São exemplos de como os Estados perdem a supremacia que tinham antes, e perdem a autonomia que tinham, por e-xemplo, de adotar certas leis. É um efeito muito grande. Por isso é que falo em sociedade global. Porque o que surge hoje é um tipo de sociedade em que o poder, que antes era só dos Estados, está diluído em atividades transnacionais — pensa-se em mercado financeiro transnacional, empresas transnacionais, arbitragem. Atualmente, existem muitas instâncias em que o Estado pode ser questionado. Isso muda a configuração de forças em todo o mundo.
TD — A distribuição de renda é um problema não resolvido dentro dos Estados e de uns Estados em relação aos outros. A concentração de renda tende a agravar-se com a globalização?
Matias — O Estado que não se preocupa com a distribuição de renda, cedo ou tarde vai enfrentar problemas. A França, que enfrenta uma instabilidade resultante de problemas de inserção social, mostra isso. Essa mesma instabilidade pode ocorrer em nível mundial. A África, por exemplo, é um continente marginalizado, que não é mercado. Mas, não dá para pensar num arranjo institucional global deixando de lado uma grande parcela da população. Precisa-se, então, pensar em instituições com mecanismos de cobrança que lhes permitam preocupar-se com esses problemas. O governo francês agora está muito preocupado com esse problema. A grande característica do poder estatal é a legitimidade democrática. A legitimidade está totalmente ligada ao poder, pois é ela que assegura que o poder vai ser obedecido. As organizações internacionais têm menos compromisso com a legitimidade democrática porque o poder é mais diluído e menos identificado. Uma das grandes acusações que se faz é que essas organizações são muito pouco transparentes. Existem algumas coisas que podem ser feitas para aumentar a legitimidade dessas organizações.
TD — O quê?
Matias — Muitas das soluções encontradas pelas organizações são ideais. A partir do momento em que o mundo torna-se interdependente, precisa-se de soluções comuns, obtidas por meio da cooperação. Com soluções de cooperação, principalmente entre Estados, é preciso tornar essas decisões transparentes, porque assim tornam-se legítimas e são mais eficientes.
TD — Isso permanece sendo ideal. A realidade é outra: os mais fortes submetendo os mais fracos, como acontece na ONU.Matias — A ONU para ser eficaz, teria de ter o monopólio da força. E está-se longe ainda do tempo em que o Estado vai abrir mão do monopólio da força em favor de uma organização internacional. Nisso os Estados Unidos fazem o que entendem. Além disso, a ONU tem outras dificuldades que derivam do fato de que o Conselho de Segurança tem cinco membros com poder de veto, o que significa que qualquer decisão ali tomada pode ser vetada, por exemplo, pelos Estados Unidos ou outro dos cinco países. Eses países ficam fora do sistema (decisão que não lhes interessa é vetada e não os atinge ), o que o torna menos legítimo, menos eficaz. A ONU precisa ser muito aperfeiçoada.
Tendência para “abraçar causas”
O paulistano Eduardo Felipe Pérez Matias, 33 anos, filho de pai português e mãe espanhola, cresceu falando os dois idiomas principais da Península Ibérica, o português e o espanhol. Estudou no Colégio São Luiz, onde foi um dos fundadores do Grêmio Estudantil e seu primeiro presidente. Bom aluno, embora não fosse dos mais comportados, foi escolhido pelos colegas para ser o orador da turma na formatura da 8ª série, função que voltou a exercer ao final do 3º ano do ensino médio.
Chegou ao vestibular bem decidido a fazer Direito. “Acho que sempre tive perfil de advogado. Tinha uma veia política forte, era aquele cara que reivindicava as coisas, protestava, procurava mobilizar as pessoas em torno de determinadas idéias. A Advocacia tem muito a ver com isso”, diz. Essa tendência para “abraçar causas”, voltou a manifestar-se na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Fadusp), onde entrou em 1991. Em 1992, ano do impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, Matias era secretário-geral do Centro Acadêmico XI de Agosto, a entidade que representa os estudantes da Fadusp, fundada em 1903.Depois disso, começou a trabalhar e o tempo para as atividades políticas minguou. Progressivamente, foi-se dedicando mais ao estudo e ao trabalho. O interesse pelo Direito Comercial foi crescendo. No 4º ano, entrou como estagiário no L.O. Baptista Advogados, onde hoje é sócio, e viu no Direito Internacional um caminho natural. Formado em 1995, algum tempo depois teve a oportunidade de fazer mestrado na França. Quando terminou, trabalhou uma temporada na filial de Paris do L.O. Baptista Advogados. Foram três anos em solo francês, que lhe renderam ainda um grande encontro: conheceu a mulher, Mari Carmen, Panamenha, formada em Direito, ela também tinha ido para a França cursar o mestrado. Foi amor à primeira vista, um encantamento que, em agosto de 2004, acabou em casamento.Na volta ao Brasil, voltou a trabalhar no L.O. Baptista Advogados, onde trabalha com Direito Empresarial Internacional, principalmente na elaboração de contratos e com arbitragem, mas também envolve-se com questões no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio) e do Mercosul.No tempo vago, gosta de viajar, ir ao cinema, à ópera, ler e jogar futebol com os amigos. “Jogo toda a semana. Não deixo passar”, diz. (EN) &